Lembro-me tão bem quando me vieram buscar. Ainda tinha o aroma fresco da madeira e do verniz e o veludo suave ao toque de cada mão.
Colocaram-me perto da janela mas não muito distante da lareira. E a partir daquele dia tornei-me parte da família. Todas as noites ele sentava-se e fumava o seu cachimbo. A sua mulher ficava junto à lareira onde por vezes declarava poemas quando não ouviam rádio. E ele olhava-a com muita ternura e o seu sorriso iluminava a sala cada vez que ela falava. E balançando escutava a voz suave e doce da sua mulher.
A casa cresceu, vieram as crianças, os choros, as noites sem dormir, as brincadeiras e os risos, mas com a felicidade de ver as crianças a crescer e a viver num ambiente de paz e amor.
Como elas adoravam-me e brigavam pela minha atenção. Todas queriam o meu balanço e nunca se cansavam. E sentavam-se ao colo do pai que contava histórias de encantar.
Os anos passaram, as crianças cresceram e deixaram de me dar importância. Agora, as suas atenções concentravam-se nos namoros e nas amizades.
Vive lágrimas de tristeza quando o filho faleceu na guerra.
Vive lágrimas de alegria quando a sua única filha casou.
E o meu amigo, esse, continuava a sentar-se todas as noites e a fumar o seu cachimbo. E balançando escutava a voz suave e doce da sua mulher.
Os anos passaram e as crianças regressaram àquela casa. O meu amigo e a sua mulher eram avós. Mas que alegria entrou naquela casa. E como amavam e mimavam aquelas crianças.
E mais uma vez, as crianças disputavam a minha atenção. E eu balançava e balançava… como eu era feliz e adorava cada momento!
Mas uma noite tudo mudou. O meu amigo nunca mais iria sentar-se e fumar o seu cachimbo. Apenas ficou o silêncio. E com o passar do tempo fui esquecida e abandonada numa cave, num canto escuro e húmido.
Os anos passaram, quantos não sei, mas um dia alguém reparou em mim. Como estava velha, suja e rangia ao mais pequeno toque. Duas pessoas pegaram em mim e levaram-me para cima. Fazia tanto tempo que não via a luz do dia. Tive receio. Quem seriam aquelas pessoas? Não me lembro! Onde está a mulher do meu amigo? Passou assim tanto tempo? Levaram-me a um restaurador. Limparam, envernizaram e colocaram um veludo novo, e fiquei como nova. Sentia-me tão vaidosa!
Foram-me buscar quando fiquei pronta. Para onde me levariam? Estava ansiosa. Parecia uma adolescente quando sai a primeira vez com o namorado.
Entrei em casa, sim, naquela que sempre chamei-a de minha e colocaram-me perto da janela mas não muito distante da lareira. E a minha nova amiga tocou-me ao de leve e fez-me balançar, sorriu e com os olhos cheios de ternura virou-se para a sua companheira e disse: “Vês amor, não te disse que era linda?”
Inesperadamente aquele sorriso e a sua voz me suscitaram lembranças. Sim, lembranças do sorriso do meu amigo e da voz suave e doce da sua mulher. E a partir daquele momento senti que estava de novo em casa fazendo parte daquela família.
Texto: Smile – Com um português mais ou menos razoável ;-)
Foto: Retirada da Net
11 comentários:
Muito bonito o texto. Para além de eu adorar cadeiras de baloiço, achei particular importância a cadeira ter sido restaurada e acabar envaidecida de si mesma. Quanto ao toque e afago, ainda bem que esta tem sido uma cadeira de sorte, que fica sempre com gente que gosta de a fazer balançar :)
Beijo.
Gostei muito da história. Da forma como tu a contas e do seu final...
Uma cadeira, é sempre uma peça importante, dentro dos nossos dias. Suporta o nosso peso, aquece no nosso calor, sabe os nossos estados de espirito, ouve os nossos segredos, conhece os nossos vicios e adivinha os nossos pensamentos...
Quantas fantasias e sonhos, começam e crescem, numa cadeira de baloiço. Ou, quantas vezes, as lágrimas se tornaram menos amargas...
Fiquei presa,tocada, ainda mais, naquele final "...tocou-me ao de leve e fez-me balançar, sorriu e com os olhos cheios de ternura virou-se para a sua companheira..."
Universo feminino - em três corações - a baloiçar e a partilhar a ternura.
E porque de afecto e ternura falamos,
o carinho do meu abraço e o desejo de uma noite em que as estrelas sorriam.
O texto está magnífico! Há objectos com os quais criamos laços afectivos.
Se as cadeiras falassem...e segredos desvendassem! Havia de ser lindo!
O texto também remete para o valor de restaurar aquilo que se degrada.
Há tanto património que necessita de limpeza ...
E faz-me pensar nos velhos que mesmo com toda a sua experiencia são marginalizados e colocados de lado.É preciso que alguém os acompanhe ao médico e outras necessidades básicas para que possam ver os netos crescer.E morrerem com a dignidade de uma cadeira muito especial.
Beijos voadores
Fantástico texto...
Doce beijo
Um mimo esta tua história..muito bem imaginada..cheia de sentimento...beijinhos cheios de Sonhos para ti..
Excelente este teu texto! Para mim a moral da historia é a necessidade da busca da companhia e do amor. É a companhia do amor que nos faz felizes, venha ele de um homem, das crianças ou de uma mulher...Onde há amor há felicidade, e contagia os outros à nossa volta... Bjs vizinhais
PS- tens um desafio no meu jardim, se puderes aceitar ;)
Bjs vizinhais
Uma bela história para contar junto à lareira,...por exemplo, na noite de Natal.
Era certamente uma prenda inesquecível...:))
Gostei muito do teu conto de Natal...:))
Olá amigas e amigo
Muito obrigada pelas vossas lindas palavras. Adorei cada palavra vossa e cada interpretação do texto.
Que bom que gostaram… eu, quem nem sou muito de escritas… acho que estava num dia inspirador. :-)
Bjs para vcs e um Sorriso Enorme
Muito bom! Ainda agora dizia a um amigo que uma boa produção (literária) teria que ter inevitavelmente um bom fim, na minha opinião. Aí está um bom exemplo!
Obrigada, pela partilha. Gostei dos sentimentos que provoca e claro do fim. :)
AlmaAzul
Eu é que agradeço a tua visita e o comentário.
Que bom que gostas-te. :-)
Bjs
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